No conto “Idéias de Canário” de Machada de Assis, um homem por acaso entra numa loja de quinquilharias e lá encontra um pássaro. Vendo aquele canário indefeso, o homem então questiona ao dono da loja de onde ele viera e quem teria sido o seu último dono. O canário ouvindo aquela afirmação, imediatamente redarguiu: “Quem quer que sejas tu, certamente não estás em teu juízo. Não tive dono, nem fui dado a nenhum menino que me vendesse. São imaginações de pessoa doente; vai-te curar, amigo…”.
Surpreso com a reação do canário, o homem protesta, certo de que o canário teria chegado ali pelas mãos alguém e o proprietário da loja seria o seu atual dono. Com um ar de desgosto, o canário então responde: “Que dono? Esse homem que aí está é meu criado, dá-me água e comida todos os dias, com tal regularidade que eu, se devesse pagar-lhe os serviços, não seria com pouco; mas os canários não pagam criados. Em verdade, se o mundo é propriedade dos canários, seria extravagante que eles pagassem o que está no mundo”.
Pasmado das respostas, o homem não sabia que mais admirar, se a linguagem ou se as idéias daquele pássaro queixoso. Como se quisesse confundir o canário, o homem então perguntou se ele tinha “saudades do espaço azul e infinito”. Sem demonstrar qualquer desconforto, o pássaro retrucou: “caro homem, que quer dizer espaço azul e infinito?”. Imediatamente, o homem virou para o canário e refinou sua pergunta: “afinal de contas, que pensas deste mundo? Que cousa é o mundo?”. O mundo, replicou o canário, “o mundo é uma loja de quinquilharias, com uma pequena gaiola de taquara, quadrilonga, pendente de um prego; o canário é senhor da gaiola que habita e da loja que o cerca. Fora daí, tudo é ilusão e mentira”.
Impressionado com a definição dada pelo pássaro, o homem decide comprá-lo para estudar mais sobre suas peculiaridades. Já em posse do canário, mandou que ele fosse colocado numa gaiola maior e ordenou que esta fosse posicionada na varanda, próximo ao jardim. Pouco tempo depois, tornou a perguntar ao pássaro o que era o mundo, que assim o respondeu: “o mundo é um jardim assaz largo com repuxo no meio, flores e arbustos, alguma grama, ar claro e um pouco de azul por cima; o canário, dono do mundo, habita uma gaiola vasta, branca e circular, donde mira o resto. Tudo o mais é ilusão e mentira”.
Por uma infelicidade do destino, o homem adoeceu e por falta de cautela do seu empregado, o pássaro acabou fugindo.Triste com a perda do canário, o homem sabia que jamais iria vê-lo. Todavia, certa feita, andando ao largo de uma chacára, ouviu trilar do alto de uma árvore: “Viva, Sr. Macedo, por onde tem andado que desapareceu?”. Era ele, o canário da loja de quinquilharias. Feliz e ao mesmo tempo espantado com aquela aparição, o homem o convidou para uma conversa e mais uma vez lhe perguntou o que era o mundo, o pássaro então o respondeu: “O mundo é um espaço infinito e azul, com o sol por cima”. Indignado, o homem lhe inquiriu: “Sim, o mundo era tudo isso, inclusive a gaiola e a loja de quinquilharias”. O canário, surpreso, imediatamente retrucou: “Que loja? Que gaiola? Estás louco!?”.
A opção por iniciar o texto com um breve relato deste conto, revela não só as nossas intenções com a estreia desta coluna, como também desafia um problema maior: qual a função da literatura? Se é verdade, como em Borges, que cada desfecho é o ponto de partida para outras bifurcações, no nosso caso o “jardín de senderos que se bifurcan” é ainda mais real do que se poderia imaginar. Toda vez que lemos um livro, um pedaço da gaiola a que estamos presos deixa de existir. A leitura é a porta de entrada do infinito, até que um dia, tudo o que éramos antes, deixa de ser. Vejam a trajetória do canário, de uma loja apertada que pensava ser o mundo, mudou-se para um jardim, ampliando sua visão acerca da realidade. Mas, somente quando fugiu, pôde então perceber que o mundo era maior que loja e maior que o jardim, e que também nele não haviam gaiolas. Em pouco tempo, o pássaro consumido pela liberdade, sequer lembrava da loja ou da casa a que estava preso, e assim mesmo pôde desfrutar do universo vasto e infinito que agora estava a sua frente. E isso era o mundo; “mundo vasto mundo, se eu me chamasse Raimundo, seria uma rima, não seria uma solução”.
Para quem aspira liberdade, não é necessário uma solução, basta uma boa leitura e a partir daí tudo se revela e também se desvela, porque diante dos olhos está apenas o que podemos ver, enquanto que nas páginas dos livros, o algo a mais que dá sentido à nossa existência. Da ficção à realidade, a realidade das ficções, o fato é que a literatura é um canal privilegiado e, talvez, o mais próximo que nós temos, para forjar um novo ponto de partida sobre o que nós somos e onde estamos. Deste ponto de partida, outros virão. De vez em quanto as veredas deste labirinto convergem, “num dos passados possíveis o senhor é meu inimigo, noutro é meu amigo”. Seja como for, no mundo literário tudo é possível, e neste sentido Jacques Derrida estava certo, a literatura pode “dizer tudo” (tout dire), mas não só, dela também se “origina tudo”.
A partir da semana que vem, todos os domingos teremos um momento especial para discutirmos e descobrirmos obras e autores, brindando todas as possibilidades que a leitura nos oferece. Por hoje, creio que já tenha sido suficiente essa pequena-grande introdução, de modo que sem me alongar (mais do que já me alonguei, é verdade), permitam-me um fim breve e objetivo: sejam bem-vindos a sua nova coluna semanal “Cadernos de Literatura”, um lugar sem gaiolas para aqueles que querem se aventurar pelo mundo, porque o mundo "nobres senhores e belas damas", é um grande deserto pedregoso, cheio de espinhos e enigmas, que nem mesmo Édipo seria capaz de decifrar. Mas isso é assunto para outro momento. Por enquanto, vamos ficar por aqui.
EMBLEMA
Nossa coluna também conta com um emblema que você poderá ganhar participando nos comentários. É bem simples, basta responder uma pergunta que será deixada sempre após a matéria. As perguntas serão sobre algum aspecto abordado no texto. A de hoje é bem fácil: “O que é o mundo?”. Até semana que vem.
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